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sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Conto Póstumo

Esse Conto, é de autoria de um grande amigo meu, ele é daquele estilo reservado, porém nem um pouco depressivo ou emo, para aqueles que gostam de uma leitura mais psicológica, estilo Clarice Lispector, eu recomendo, para aqueles que gostam da ira e da e da inconformidade de Cecília Meireles é um ótima leitura, eu sei pode parecer um pouco longo, mas vale a pena ler até o fim.
Conto Póstumo

Tomei o último gole, apaguei o cigarro no cinzeiro, tirei uma nota de cinco reais do bolso e a coloquei sobre a mesa. Relutante, me coloquei em pé e me encaminhei rumo à saída. O show começaria em meia hora. E eu não queria ir. Parei por um instante, jurei a mim mesmo que seria a última turnê. E eu não queria ir. Sentia nojo de pensar em toda aquela gente pulando, gritando meu nome, era obsceno. Sentia nojo. Sentia nojo de mim mesmo porque sempre acabava indo. Subia ao palco, cumprimentava aquela plateia sórdida e repugnante, que pulava aos gritos, que me idolatrava, e ainda – no cúmulo da minha hipocrisia – agradecia a presença daqueles que me davam vontade de vomitar as entranhas sobre o palco, sobre eles mesmos. Eu cantava com ódio, com o mais puro ódio. Eu cantava hipócrita. Cantava vil.

- Não vou – disse a mim mesmo.

E não fui. Não foi isso que eu imaginei que aconteceria ao me tornar músico. Aliás, até imaginei, mas fingi que não, me disse que seria ao contrário. Que tudo daria tudo certo. Me enganei. Por um momento pensei que isso não poderia estar acontecendo comigo, que era ridículo, que milhares (talvez milhões) de pessoas dariam tudo pra estar no meu lugar, que eu sou um ingrato, um imbecil, que eu não merecia ter alcançado tanto. Que eu não merecia. Subitamente me vi pensando que já não valia a pena. Quis afastar esse pensamento mas era tarde demais; eu já era a mais pura encarnação da pusilanimidade. Eu era nojento, era baixo. Aquela plateia gritando e vibrando, aquilo era eu. Era a manifestação mais íntima de mim mesmo. Era o meu eu interior mais sincero que inutilmente eu lutava por reprimir sem opor resistência suficiente – agora, como em uma epifania, eu via isso, eu realizava isso, eu sentia aquela multidão quente dentro das minhas veias, dentro da minha mente, pulsando, vibrando. Experimentei a mais imaculada aversão a quem eu me tornei – meu corpo era sujo demais para estar perto de mim.

Saí do bar, insignificante e hediondo, andando sem rumo. Eu que sempre quisera viajar o mundo sentia extrema apatia à explosão sensível que se oferecia aos meus sentidos naquele lugar desconhecido. Pra mim estava tudo em preto e branco – mais em preto do que branco. De súbito encarei o mais longe que meus olhos podiam alcançar na escuridão que se fazia na rua em que eu andava. Vinha longínquo um caminhão de mudanças, visivelmente lotado de pertences de alguém. Talvez mudança é o que eu preciso também, pensei. O caminhão se aproximava. Eu me aproximava. Num movimento harmônico e natural, o encontro de dois polos de cargas opostas.

Está vindo. É ele.

Por um segundo imaginei os gritos da multidão.

Adeus.


Eduardo Neves da Silva

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